quinta-feira, agosto 07, 2003

Dr. Roberto

Cresci ao longo da ditadura militar e uma das conseqüências disso, apesar de ter estudado em uma escola religiosa e tradicional, foi a de que todos os meus professores eram comunistas. Na prática, isso não é bem verdade: como dizia nosso professor de fí­sica, comunista mesmo era só o professor de português. Mas o fato é que, naqueles anos, Dr. Roberto Marinho era apontado como o inimigo a ser combatido: "dono do país", "mandante" em tudos e todos, "arquiteto do mal", manipulador por trás de tudo. Não faltavam as histórias secretas ou explicações mirabolantes que atrelavam fatos diversos à  vontade e manipulações do jornalista-empresário.

Com os anos, passamos pela abertura lenta e gradual, o surgimento do PT, a eleição de Brizola, Dr. Roberto imortal na ABL, a fantástica eleição e impeachment de Collor, as tentativas e finalmente a chegada de Lula à presidência, a cassação de ACM. No país, aos poucos e a duras penas, vai aumentando a transparência, a democracia se consolidando. Será um processo de décadas, mas ninguém fala mais do poder da Rede Globo ou das vontades do Dr. Roberto. O jornalismo da Globo é inclusive reconhecido por muitos como dos mais isentos e competentes, Basta ver os profissionais que lá trabalham, argumentam.

No hospital aqui em frente, muitos boatos depois, faleceu o Dr. Roberto, 98 anos. Sem dúvida um fato lamentável para a família, filhos e netos, com os quais me solidarizo. Para o paí­s, a perda irreparável: fundador do jornalismo contemporâneo, visionário, um dos pilares e exemplos do paí­s, ousado e talentoso, defensor da liberdade de imprensa e democracia, estes apenas alguns dos adjetivos ouvidos de políticos, artistas, jornalistas. Embora não tenhamos chegado a ouvir declarações similares de Brizola ou quem sabe de Fidel, talvez seja apenas uma questão de tempo: Oscar Niemeyer já falou, bem como o presidente da CUT. E houve uma incrível guinada no discurso, se comparado ao dos anos 70 e 80.

Não quero julgar a mudança da opinião, fato certamente de grande complexidade. Mas quero registrar e comentar que a morte do Dr. Roberto tem um forte lado simbólico. É um rito de passagem para o paí­s. Não importa se Dr. Roberto foi ou não aquele maquiavélico "dono do paí­s", ou se foi o gênio empreendedor. Julgar seu papel verdadeiro na história será um grande desafio, para historiadores e estudiosos perseguirem. Mas registre-se que, de uma forma ou de outra, sua morte é uma passagem importante: a ameaça, o fantasma de um, ainda que suposto, "dono do paí­s", que assombrou uma geração, está superada.

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